Aos 20 anos fui morar na capital, num apartamento micro dividido com a irmã. A vida não tinha luxos, mas a efervescência etílico-cultural estava logo ali, ao alcance das pernas e do bolso. Bastava uma caminhada rápida pelo Bom Fim ou em direção à Cidade Baixa e bebia-se com estudantes de jornalismo em bares descolados, ao lado de artistas, cineastas, músicos, professores universitários e pseudo-críticos de qualquer coisa. Gastava-se poucos cruzados.
Entre matérias para a revista da faculdade, o estágio, discussões existenciais com as amigas e bebedeiras sem fim, vivia eu. Até me dar conta de que a vida não era exatamente aquele microcosmo meio boêmio, meio intelectual, meio de esquerda. E o que ajudou a cair a ficha foi, veja você, a Expresso Rio Guaíba – que detém o monopólio dos transportes no trecho Guaíba-Porto Alegre.
Domingo sim, domingo não, eu acordava – com muito custo – por volta das 9h para conseguir chegar a tempo de almoçar na casa da mãe. Caminhava cerca de 20 minutos até o corredor de ônibus na avenida Farrapos, o horário de saída do busão do Centro devidamente calculado. Ali, na parada, a espera do ônibus, no antro da chinelagem, as coisas voltavam a fazer sentido. E faziam mais ainda ao longo dos 30 e pouco quilômetros de chacoalhação que se seguiam, dentro do Guaibão, certas vezes lotado. O percurso me lembrava que a vida – não exatamente a minha, ah, mas, convenhamos, a minha também – é difícil. O dinheiro nem sempre não é suficiente para pagar a passagem. Comprar um sorvete de R$ 1,50 no caminho faz, sim, diferença. E as roupas da moda... ah, esquece essa parte. Eu não era o ser mas paupérrimo do mundo, mas não sabia exatamente o que era filé mignon, assim como os passageiros ao redor. Saca? A Expresso Rio Guaíba, quem diria, me proporcionou reflexões. Reflexões relevantes.
Agora que vivo no Planalto Central, é o retorno ao Rio Grande que me faz, algumas vezes por ano, parar para pensar na dinâmica das desigualdades - não necessariamente as que dizem respeito ao bolso. No extremo Sul, as pessoas terminam casamentos de 20 anos, têm filhos não-planejados, trancam a faculdade porque a mensalidade chegou às alturas, tratam doenças repentinas e também as crônicas, fazem a prova do mestrado. As pessoas têm quatro gripes ao ano ou mais. Espirram durante o inverno. Descobrem um novo amor no verão. Testam uma receita de risoto no sábado à noite, cozinham pinhão. Escolhem vinho demoradamente no supermercado. Enfrentam a Freeway sem medo na véspera do feriadão. Homens ligam no dia seguinte. Mulheres nascem sabendo fazer pudim. Boa parte tem sede de cultura. Aí eu pergunto: tem contexto mais incrível para se viver de acordo com a realidade dos fatos?
Não. Não tem. Em Brasília, é tudo às avessas. Tudo fast food. Almoço de domingo no restaurante. Sorrisos cênicos no fim de semana, à beira do Lago. Relacionamentos por interesse, puro interesse, descarado interesse. Mesmo se remoendo por dentro, mesmo querendo estar em outro lugar do globo, mesmo desabando em silêncio, finge-se. Afinal, vive-se na Disney, o maior PIB per capta do país, sem pobreza, sem inverno, sem assaltos, sem transporte público. Sem homeless. Que contradição.
*********************
Se antes era no Guaibão que eu acompanhava frente aos olhos as dificuldades do dia-a-dia - as minhas e as realmente graves -, agora é em cada retorno ao Sul do país que eu lembro como a vida realmente é. Em Porto Alegre, é permitido desmoronar, começar de novo, reinventar-se profissionalmente, emocionalmente, afetivamente. A vida segue, com dramas e pequenas alegrias, falta de grana, reviravoltas. Difícil, simples, engraçada, frustrante, sofrida e surpreendente. Fácil, é para bem poucos, uma elite escolhida ao acaso. Os passageiros do pinga-pinga sabem bem.
sábado, 7 de maio de 2011
Assinar:
Postagens (Atom)